segunda-feira, 25 de junho de 2012

Notas de crítica literária I: exegese de um personagem.

Foi Assento da Sanita, pseudónimo de um regular pai de família, fazendo sair, de forma casuística, uma peculiar e distorcida visão da vida na aldeia sob a forma de saga picaresca. Isto num blogue francamente aos caídos. No entanto, não se perdem esses exercícios de escrita e interessa ora analisar as condições da real biografia do blogger que levaram à criação deste peculiar universo. Estarão na posse do autor ainda mais umas centenas de páginas, mistas de diário, mas tergiversando livremente. Da análise desse espólio é patente que Adozinda é inspirada na sua mulher-a-dias vestida de traços de Maria Papoila. Queixa-se várias vezes de esta levar porcos à socapa lá para casa e mesmo encetar descabidas práticas agrícolas pelos cantos da casa e a ter surpreendido em divagações auto-manipulativas com peixes comprados na loja de congelados: safios, pargos e peixes-espada. Difícil de dissuadir, foge ao patrão, que entretanto se fascinou pelo seu espírito simples mas profundamente livre. Uma página do diário diz assim: ‘ Vanessa [Adozinda] acoitou-se na dispensa e eu tentei convencê-la a deixar-me vê-la a introduzir no bordedo uma garoupa de cinco quilos e meio, besuntada com mel e pasta tandoori. Só consegui convencê-la depois de lhe garantir que não reclamaria a lata de goiabada que introduzira no recto e que agora tinha dificuldade em expulsar. Prometi-lhe sigilo e propus-lhe certas práticas inconfessáveis. A primeira consistia na adoração do bidé, com os seus vários anos de sarro junto ao bordo superior, do lado de dentro, enquanto eu vestia as roupas dela e ela usaria as minhas cuecas ensopadas em piri-piri logo após rapar os pêlos púbicos com uma lâmina de barbear já muito romba. Corri a anotar no meu diário literário que ‘trepou pela parede de azulejos acima e só largou o candeeiro dos lavabos após mangueiradas prolongadas’. Entretanto, descurara o trabalho doméstico e a roupa, loiça suja e porcaria em geral, amontoaram-se pela casa, a ponto de termos dificuldade em circular com facilidade. Vanessa parecia regozijar-se com o factos singelos como o esmagar com o pé, um triângulo de queijo ‘la vache qui rit’ amolecido do calor, quando inadvertidamente pisou umas truces minhas com coraçõezinhos e com os elásticos já à mostra que o continha por desleixo. À noite sossegava e contava-me como era perseguida por um burro, ou talvez por um tio – não se lembra bem – lá na aldeia, que era pirómano e incendiava as matas por gozo, mas que estava sempre a pedir-lhe que o acompanhasse a beber uma ‘malga dele’, sendo que o que ele queria era apanhá-la e forçá-la ao coito ano-rectal. Não percebi se logrou o seu intento, esse tio ou burro, mas certo é que as torcidas de Vanessa eram grossas como paus de eucalipto e ela largava-os frequentemente, pois já não ‘se segurava’. E era em qualquer lado: no tapete da sala, enquanto passava a ferro ou puxava lustro às alpacas. Os meus dias de solidão tinham sido preenchidos por Vanessa, que estou sinceramente a pensar desposar’. Assento acabou por não casar com Vanessa pois esta fugiu com a cobradora da electricidade que lá foi a casa na véspera do matrimónio. Teve AdaS de cancelar o faustoso casamento e até tinha limpo a casa. ‘Se é lésbica, o melhor é não casar, pois certamente se veria numa situação de infelicidade e aparência apenas por conveniência social’ – conclui AdaS no seu diário.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Notas ociosas: contributo para um Dicionário Esotérico I

Alquimia – Prática mixordeira de certos indivíduos de longas barbas e chapéus pontiagudos que pretende transformar metais ‘vis’ em ouro aquecendo pacientemente sal, mercúrio e enxofre e passando a vida inteira nisto, enquanto vão citando, com um ar compenetrado, princípios filosóficos herméticos, como: ‘o que está em baixo é como o que está em cima’, que é sempre uma bela imagem se pensarmos em duas amigas nuas afocinhando nas miudezas uma da outra. Bruxaria – Umas velhas a roçarem-se em paus de vassouras e bodes a cheirar a bedum enquanto ‘metem’ drogas maradas para ver ‘coisas’, nomeadamente besuntando-se com banha de enforcado contendo meimendro, estramónio e beladona porque ‘já não têm idade para o MDMA’ – segundo dizem. Cabala – Prática de pendor mistificante inventada por uns judeus, que consiste em acreditar num homem gigante que se chama ‘Adão Kadmon’ e está no céu e é feito de umas bolas com umas letras dentro ligadas umas às outras por traços, uns para trás e outros para a frente e que se chamam sephiroths ou ‘emanações’, sendo que a primeira espichou a partir de coisa nenhuma – isto é, porque sim – e que se chama En Sof, para dar um ar sério á coisa. As bolas correspondentes aos tomates tendem a ser maiores que as outras e a ter pelos, dizem. Maçonaria – ‘Clube do Bolinha’ para crescidos, que nem os próprios percebem ao certo o que é que faz e para que serve. Os maçons adoram que quem está de fora ache que eles ‘mexem os cordelinhos desta merda toda’, mas geralmente só conseguem mandar umas bocas nas direcções de sociedades recreativas de bairro, clubes de canasta e comissões de melhoramentos. Uma boa parte dos membros acredita piamente na maioria das entradas deste Dicionário. Diz-se que andam todos nus, às escuras só com um pequeno babete à cintura enquanto meneiam, com ar sério, uns esquadros, compassos e outras ferramentas de construção civil da loja dos chineses. Medicina Ayurvédica – Prática terapêutica de monhés carecas ‘do antigamente’ com túnicas e sandálias, que mete ervas esquisitas que se vendem na Body Shop e nas lojas de brasileiros. Reflexologia – Prática terapêutica ancestral inventada nos EUA nos anos 90 em que se carrega nos pés de tansos para lhes sacar guito, enquanto se vai comentando os calos e as gretas dos calcanhares a precisar de hidratante. É praticado por cabeleireiras espertalhonas. Rosacrucianismo – Uma cena mística com cruzes e rosas que nunca existiu, mas que leva pessoas a fazer tertúlias em Campo de Ourique, Telheiras, Rua dos Bacalhoeiros e em restaurantes macrobióticos vários em que se distribuem cromos com o Conde de Saint Germain para ‘se concentrarem’. Wicca – Cena freak de góticas que mete velas e a Natureza e que se faz na mata com pentáculos e bodes ao som dos Moonspell.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Subsídios para a epistemologia e hermenêutica da cultura popular, 3

Dora e o SM

Ora mil nove e oitenta e oito... Onde estava eu? Andava por aí, com 12 anos, já moço feito, púbere e bem ensocado.

Antes de arder o Chiado, havia um programa na RTP chamado Deixem Passar a Música, onde António Sequeira, Valentina Torres e Ana Paula Reis se entretinham a, entre outras coisas, apresentar as cinco canções que a RTP encomendara a "compositores de renome" (e o que seriam senão 'de renome' indivíduos como Luís Filipe ou Luís Duarte?) para competirem com a cantiga vencedora do Prémio Nacional de Música de forma a que, de entre as 6, dealbasse a imaculada pomba que voaria até Dublin para nos representar na Eurovisão. Foi um ano de sincera revolta, para mim. Devo confessá-lo: o Prémio Nacional de Música TINHA que ter sido ganho por Ana e Suas Irmãs, belíssimo projecto com uma agradável cantiga de Nuno Rodrigues. Não foi, no entanto, e eu apanhei uma camada de nervos. Adiante...

Do Prémio Nacional de Música saiu vencedora Dora, com "Déjà-vu", sentimento partilhado por muitos portugueses quando a viram: "esta não é a serigaita que cantava o 'arreia as calças gabiru' ou 'não sejas ruim par'mim' ou qualquer coisa assim?". Pior ficariam quando coube igualmente a Dora interpretar a canção que José Calvário e José Niza, consta que num armazém ali a Braço de Prata, conceberam como hino às práticas sado-masoquistas: "Voltarei", a canção que, finalmente, nos foi representar a Dublin.

Se musicalmente "Voltarei" é um pastiche de power ballad à Meatloaf cantada pela Bonnie Tyler dos pobrezinhos, já liricamente a coisa é de outra água. José Niza confere uma toada noir, toda ela coiros curtidos, correntes, pulseiras de estrangulamento, ao que parece ser só uma cançoneta de ai jesus que lá vou eu. Atentemos nalgumas das subtilezas:

VOLTAREI P'RA TI
ESPERAREI POR TI
POR TE AMAR ASSIM - primeiro indício, com aquele indiscreto "assim", que isto não é só um amorzito banal
VOLTARÁS P'RA MIM

ESPERAREI POR TI
SOFREREI POR TI - e isto dito assim como quem nem repara...
VOLTAREI POR TI
VAMOS JOGAR ATÉ AO FIM - ora cá está; a componente lúdica, "isto somos só a gente a brincar, amor"

1, 2, 3 VOU COMEÇAR - belíssimo verso, prenhe de simbolismo, vertendo toda a ritualização do 'contrato prévio' sado-masoquista
É AGORA A MINHA VEZ - saudável visão de alternância
ESTOU AQUI E NÃO ME VÊS
PORQUE ANDAS CEGO - presume-se que o parceiro foi vendado, prática habitual no milieu

FINGI QUE TENHO OUTRO AMOR
PARA PÔR NO TEU LUGAR - isto sim, isto é poesia com responsabilidade social!, ao que cremos, é o primeiro verso português a popularizar o uso do vibrador
AGORA FICO A GANHAR
POR DOIS A UM SEM TI - (presume-se que fosse um daqueles que dá a volta)

MAS FIQUEI SEM TI
POR TE AMAR ASSIM
QUEM RI MELHOR CHORA NO FIM - o verdadeiro slogan do S&M português... 

O JOGO JÁ TERMINOU
A NOITE TAMBÉM PASSOU
QUEM PERDEU OU QUEM GANHOU
EU JÁ ESQUECI - o compromisso de reserva e discrição: fina a noite, ninguém precisa de saber quem foi açoitado por quem

AI, JOGO DE SORTE E AZAR
O AMOR É COMO O MAR
TEM MARÉS DE IR E VOLTAR
E EU VOLTAREI P'RA TI - Dora pungentemente retrata a submissa, a que volta para novas brincadeiras com velas e cordames de navio e plainas... não?... plainas não?

VOLTAREI P'RA TI
ESPERAREI POR TI
VOLTARÁS P'RA MIM

ESPERAREI POR TI
SOFREREI POR TI
VOLTAREI P'RA TI
TU VOLTARÁS P'RA MIM

VOLTAREI P'RA TI
VOLTAREI P'RA TI
ESPERAREI POR TI
VOLTARÁS P'RA MIM

O vídeo era uma coisa insossa; muito mais gratificante é esta versão em que se pode ver a Valentina e o Sequeira:




E foi assim, 1988. Depois disto, como não havia o Chiado de arder?