quinta-feira, 3 de maio de 2012

O QUOTIDIANO NA ALDEIA

O coveiro andava a matar toupeiras à pazada quando ouviu chocalhar os ossos de Armindo na cova ‘cloc, cloc, cloc’, mesmo ao lado do Jazigo do Dr. Telles e esposa. Aproximou a orelha da lápide e hesitante perguntou: -‘És tu Armindo?...’ Uma voz abafada soou lá de dentro: -‘Sou pois, caralhos ‘ta fodam’. O coveiro destapou a campa e tirou os ossos para fora. Armindo sacudiu a poeira dos andrajos putrefactos que lhe serviam de roupa e suspirou longamente, inalando o ar puro das serras. –‘Arre, caralho, já bebia duas malgas dele. Tenho mofo até aos…’ E olhou para o osso pélvico onde costumava estar a sua masculinidade e onde agora apenas havia um enorme vazio. Foram até á tasca do Merda Seca onde Josué estava a vomitar para a serradura no chão e a gritar: -‘A minha Adozinda cheira a peixe, rapaziada! Acreditem. Ainda no outro dia a mãe lhe deu umas bolas de naftalina para enfiar no vazadoiro e foi o mesmo que nada…Pachos de creolina, nada. Pegar fogo à pintelheira ensopada em álcool canforado…nada,…ai foda-se que preciso de apanhar ar…’ Uma golfada de vómito cor de vinho tinto atingiu Armindo e o coveiro que já estavam a petiscar umas peles de bacalhau assadas e umas malgas ‘dele’. Nisto, Adozinda perseguia um burro tinhoso que já quase não tinha pelo e tinha a pele coberta de chagas supurantes. O bicho zurrava de desespero e corria à frente de Adozinda tentando escapar. ‘Cloc cloc cloc’- Era Armindo que se aproximava. –‘Ó mulher, deixa lá o animal! Anda lá é beber umas malgas dele!...’ Adozinda deixou o pai a tentar ordenhar o burro, que entretanto se acalmou e foi com Armindo à tasca do Merda Seca. No caminho Armindo contou-lha da triste figura de Josué que gritava inconveniências sobre ela na taberna. No caminho passaram pela vala que tinha o pontão. ‘Armindo disse a Adozinda: -‘Sabes que sempre quis casar contigo’. E foram para dentro do pontão que continuava meio de lama e bosta e tinha lá dentro duas ovelhas mortas e cheias de larvas de varejeira que as ratazanas mordiscavam. Armindo tirou um enorme peixe-espada do bornal. A mãe de Adozinda estava a fazer umas benzeduras ao tornozelo inchado do pai de Josué, Aldemiro, que tinha levado um coice do burro, tropeçado e dado uma queda. Besuntava-lhe o inchaço com enxúndia de galinha rançosa com açúcar e dizia: ‘Zesus que é o Santo nome de Zezus, onde está o Santo Nome de Zezus não entra mal nenhum. A Virgem é filha de Santa Ana, Santa Ana é mãe da Virgem. Zezus Cristo é filho da Virgem e a Virgem é mãe de Zesus Cristo. Vestes e revestes sacerdotes no altar e assim como o sacerdote se veste e reveste no altar, ossos e linhas do meu Aldemiro vá ao seu lugar, isto seja tão verdade como Jesus Cristo disse missa no altar’. Nossa Senhora, Virgem pura, tragas linhas ossos e tendões do meu Aldemiro, amém ‘. De seguida rezou um salve-rainha à N.Srª dos Desmanchos e fez o sinal da cruz sobre o inchaço três vezes. Nisto, surgiu Josué cheio de vómito do peito até aos pés e disse:- ‘’ bênção, senhora minha sogra’. ‘Deus te abençoe’. Disse-lhe a sogra. O pai regorgitou uma golfada de esperma de burro e foi cortar um naco de toicinho com broa para a merenda que acompanhou com duas malgas ‘dele’. FIM

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O DESTINO OFERECE PRESENTES EM DESACORDO COM O LIVRO

Josué ficou na aldeia a acabrunhar pelos cantos. Afiava paus e ia acrescentando baraças a uma bola de cordel que guardava por ócio no bolso. Uns pândegos da taberna do Merda Seca ainda lhe conseguiram pregar duas bezanas para o distrair, mas o rapaz morria de tristeza. Na procissão da Senhora dos Desmanchos ia em último com os cães e perdeu-se pelo meio das giestas a caminho da ermida. Só o encontraram uma semana depois amigado com um pastor que lhe dera cinco e quinhentos. O Pastor era Armindo, que tinha o hábito de se menear pela aldeia aos domingos com uma cantarinha à cabeça. O pastor tinha ficado assim desde que bebera um chá de lacrau receitado pelo virtuoso de Perneanes para uma quebradura num testículo. Antes era um rapaz folgazão e bem-disposto. Depois do chá, volta-não-volta, enganava Josué e aproveitava-se da sua infantilidade para lhe fazer mal. Um dia, Armindo apareceu pela manhã enforcado numa amoreira do adro da igreja. O pai de Josué foi o quem o descobriu com a face roxa e com a língua de fora, mas como tinha de ir entregar umas enxúndias ao sacristão não deu importância ao caso. O sacristão já não morava ali e tinha-se dedicado a curtir peles numa aldeia vizinha, pelo que o pai de Josué ficou sem saber o que fazer às enxúndias. O morto, ao fim de uma semana começou a cheirar mal e começou a haver abortos na aldeia devido aos ares pestilenciais. Os aldeões dividiram o rebanho entre eles, assaram todas as ovelhas, comeram e beberam. Josué alheava-se do ambiente festivo e continuava a suspirar. Especialmente na feira, de olhar vazio, afagando os peixes-espada, os safios, as bogas e mesmo as sardinhas de barrica. Uma vez, foi para o pontão, que entretanto estava já meio de lama e tinha uma ovelha morta, para poder afagar e cheirar sossegado um pargo-mulato, que comprara a custo com dinheiro roubado a seu pai. Apanhou o velho distraído a falar sozinho enquanto afagava um talo de couve e surripiou-lhe dois contos de reis. Uma carroça de pargos custava quinhentos escudos e o peixeiro prometeu-lhe que traria o resto dali a umas semanas. Josué, no pontão ejaculava na barriga do pargo e ria-se porque parecia que ‘o bicho tinha ficado com ovas de repente’. –‘Sus! Ó Josué! És tu, carago?!’ – Disse uma voz feminina vinda da entrada do pontão. Era Adozinda que tinha logrado conduzir a sua cadeira-de-rodas até ali. Tinha caído várias vezes pelo que se apresentava enlameada e com uma escoriação na cabeça por onde escorria massa encefálica. –‘Ó rapariga! Bons olhos te vejam! Ai o meu coração, que saudades eu tive de ti, tanto peixe que…’ – E enbargou-se-lhe a voz. Abraçaram-se longamente e depois saíram montados numa vaca em direcção à aldeia. –‘Conta lá moçoila, o que te aconteceu? Enriqueceste em Penajoia?’ –Perguntou Josué. – -‘Não foi Penajoia, foi Abrantes, caralhos!...’ –Retorquiu Adozinda sorrindo com o seu único dente. –‘Fui para lá servir na casa de um senhor que era talhante. Fiz tanto broche pá… Mas tinha cama e roupa lavada. E comida. Uns nacos de sebo, quando os conseguia tirar aos cães…’ – Mas fiquei rica, sim. Juntei quase dois contos de réis. Até comprei um penso higiénico, queres ver?’ – E mostrou uma toalhinha turca ensanguentada a Josué. Quando chegaram à casa do pai de Josué este assustou-se pois não reconheceu nenhum dos dois, desencavou do ânus do pai de Adozinda e ficou com o coração a bater e com a tensão arterial muito alta e a sentir-se mal. –‘Ai rapaz, que susto me pregaste…e essa velhota que vem em cima da vaca quem é? Já hoje tive de me zangar com o homem do peixe que veio cá deixar três carroças de pargos. O cabrão….Mas fodi-lhe o peixe todo ao pontapé, carago! Josué e Adozinda olharam a imensa pasta de peixe esmagado ao sol que se espalhava na rua em frente, pela entrada da loja dos animais, que saía pela janela do primeiro andar e pela chaminé. Uma velhinha varria serenamente a rua por entre os monturos de bosta de vaca e peixe. Depois, começou a introduzir o tortuoso cabo da vassoura de giesta na senaita, largando guinchinhos roucos e pequenos flatos. Era a mãe de Adozinda, que afinal estivera viva desde sempre e que o pai tinha tomado por morta porque se embebedou e foi a outro enterro nessa tarde e ela não lhe disse nada para não o aborrecer – que ele, nessa época, tinha mau vinho. FIM