quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Subsídios para a epistemologia e hermenêutica da cultura popular, 1


O DUO NEVADA

O ano de 1987 ficou indelevelmente marcado, no que toca à cultura popular portuguesa, por dois fenómenos de elevado quilate que, não podendo ser interpretados em conjunto, se assumiram como duas forças centrípetas que marcaram a evolução de duas correntes diversas que ainda hoje coexistem no panorama da produção artística nacional. Falamos, é óbvio, da primeira publicação de Vareta Funda, ainda sob o pseudónimo que os pais lhe haviam dado ao nascer, numa colectânea de poesia infantil lançada pela então Escola Preparatória n.º 2 de Tomar (obra de surpreendente maturidade e profundidade, articulando um pensamento bem definido, estruturado e estruturante da nova escola da filosofia portuguesa, agrupada sob o chavão necessariamente vago de "olha que o gajo/a gaja é mais esperto/esperta do que parece"), e falamos também da memorável noite no Casino do Funchal em que o Duo Nevada levou para casa um bocadinho da base misturada com suor da Ana Zanatti, como prémio pela vitória no Festival RTP da Canção.

Sendo que a exegese da obra singular de Vareta Funda tem já sido levada a cabo por académicos de renome, a nossa análise de hoje irá incidir no contributo maior que a obra lírica do Duo Nevada, melhor dizendo: de Alfredo Azinheira, aportou à reestruturação da mentalidade portuguesa no que toca a comportamentos sexuais recorrentes mas ausentes, por princípio, do debate popular sobre a matéria: o onanismo.

Sobre a singela melodia de Jorge Mendes e Alfredo Azinheira, com a acertada orquestração de Ramon Galarza, o Duo Nevada perpetrou um salto épico, um rasgar de limites no conteúdo lírico da canção popular - não se trata apenas da primeira letra inteiramente dedicada à masturbação (masculina, no caso) mas outrossim da coragem em assumir toda uma simbologia (vide videoclip acima) conexa, sobre a qual algumas pistas serão indicadas mais adiante.

Debrucemo-nos, de antemão, sobre a elegante obra de Alfredo Azinheira, que abaixo se transcreve, com análise de entremeio:

NESTE BARCO À VELA - o evidente mas não deselegante jogo gráfico transporta-nos, por homofonia, para a assunção fálica de que neste barco HÁ vela. Se Maria Velho da Costa argumentou, em defesa da canção de Mário Mata, preterida naquele festival, que este mesmo título é em si mesmo sexista e misógino, permitimo-nos salientar o frescor e a frontalidade com que Azinheira assume uma masculinidade inteira e não castrada, pré-freudiana, inscrevendo-se numa tradição telúrica e ancestral que, em 1987, ainda sob os escombros do terramoto Modern Talking, urgia recuperar.

No meu país há um rio

Que corre sem parar - quando Glória Marta, 2ª classificada no festival e vencedora do prémio interpretação, apareceu na capa da TV Guia afirmando que A. Azinheira escrevera estes versos tendo por tema a incontinência urinária de Jorge Mendes, procurando assim criar diferendos no seio do duo, a mesma aproximou-se, por defeito, da imagem metafórica que aqui é transmitida: a da vitalidade masculina, da infindável riqueza da produção testicular. A imagem país-corpo confere nitidez a este rio que corre sem parar, no fluxo constante do desejo-sémen.
No meu país um navio
Nem sempre se faz ao mar
- Azinheira introduz, pela primeira vez, de forma cortante e enfática, a temática do onanismo, não enquanto prática mas conceito; fá-lo ainda defensivamente, não negando totalmente, como o fará mais adiante, a impressão de "alternativa menor" que enforma o discurso público sobre a matéria: da parte do país-corpo, "nem sempre" há um esforço de contacto, de procura, de ligação ao exterior; é bela a forma como Azinheira aqui ilustra a temática do corpo como fronteira e insularidade.

No meu país a tristeza
Tem o nome solidão
- remoque subtil à condição social do onanista.
No meu país a beleza
Invento-a na minha mão -
e aqui sim, aqui o clamor de Azinheira, em belíssima imagem, sobre a assunção plena da prática masturbatória, uma verdadeira sublimação alquímica da punheta, se nos permitem, num eu que a si se contenta, espelhando de certa forma um criacionismo Deleuziano mas estanque, estanque numa individualidade singular Derridaiana ou, indo mais longe, na eleição do corpo como unidade básica e não comunicante do significado.

Navego um barco vazio
Que atravessa o rio
Para o cais da saudade -
numa incursão metafísica, Azinheira aborda a mortalidade e a condição solitária da travessia da vida, o 'ser sozinho', o carácter extrínseco da 'outridade' - com um vislumbre de alguma religiosidade patente na imagem circular que o "cais da saudade" transmite enquanto ciclo de morte e ressurreição.
Vou numa onda tão bela
Neste barco à vela
Que não tem idade - referência oblíqua à perenidade do prazer onanista.

Navego um barco tão cheio
Contigo no meio
No rumo da esperança - a subtil inflexão de destinatário é, a nosso ver, um dos momentos maiores do poema de Azinheira; a forma discreta com que 'o outro' é introduzida é trazida com mestria, com a localização precisa de "contigo no meio" como prova da centralidade (e porventura da discursividade?) física e literal do falo; o "barco tão cheio" como imagem potente da plenitude de si, da existência singular.
Vou numa onda tão bela
Neste barco à vela
Com ar de criança - novamente a perenidade, o carácter de 'amigo de infância' da prática masturbatória, da punheta como primeira memória do prazer.

No meu país há um rio
Que corre sem parar
No meu país um navio
Nem sempre se faz ao mar

O meu país é um sol
De raiva, de alecrim -
versos de grande carga telúrica; a imagem fálica do alecrim, a "raiva" associada ao poder físico, ao carácter totémico do falo como deus-corpo e deus-sol.
Mesmo assim tem uns olhos
Negros que esperam por mim -
a morte, a morte como travão último - e único? - ao prazer onanista, fechando em beleza esta obra notável antes da repetição do refrão.

Navego um barco tão cheio
Contigo no meio
No rumo da esperança
Vou numa onda tão bela
Neste barco à vela
Com ar de criança

Para além da obra lírica, merece a pena atentar em três detalhes, todos eles concentrados nos primeiros trinta segundos, do videoclip acima reproduzido:

1) o automóvel descapotável - sendo sobejamente conhecida a carga fálica do símbolo "automóvel", a escolha de um descapotável de pequenas dimensões funciona também como símbolo de transparência. Há, por detrás desta escolha, uma mensagem a dois tempos: um claro "não me escondo como punheteiro" e um oblíquio, no sentido Barthesiano do termo, "enquanto punheteiro, toda a temática da dimensão do órgão sexual me é irrelevante: o meu basta-me na sua individual perfeição".

2) a espiral de Niemeyer - referência elíptica, por um lado à erudição de Mendes e Azinheira, e, por outro, à própria forma da espiral enquanto infinitude em si mesma, adonando-se assim de mais uma representação gráfica para a simbologia onanista.

3) o blusão de ganga com pelo de ovelha por dentro - tentativa nobre da definição de um código visual do onanista; verdadeira exortação: "punheteiro!, conhece-te e faz-te conhecer!"... A escolha da ganga pela sua simbologia proletária e minoritária é elegantemente complementada pelo fraseado filosófico que representa o pelo de ovelha por dentro do blusão: a inversão ou interiorização do exterior; a pele que sobre si mesma se vira; a dupla insularidade (ou tripla, se tivermos em conta que o videoclip é filmado na Madeira). Arriscaríamos ainda um potencial significado adicional: a eventualidade de Mendes ou Azinheira ou ambos terem sido sujeitos a circuncisão, simbolizando o blusão uma espécie de "retorno do prepúcio"?

Sobre o impacto social que esta obra feliz teve no nosso país, os mais recentes estudos de Maria Filomena Mónica transmitem uma imagem fidedigna e adequada, nada havendo a acrescentar.



terça-feira, 29 de novembro de 2011

Holy Shit!